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Dois pontos iniciais de observação
1) A realidade
A riqueza acumulada pelo 1% mais abastado da população mundial agora equivale, pela primeira vez, à riqueza dos 99% restantes.
Essa é a conclusão de um estudo da organização não-governamental britânica Oxfam, baseado em dados do banco Credit Suisse relativos a outubro de 2015. O relatório também diz que as 62 pessoas mais ricas do mundo têm o mesmo (em riqueza) que toda a metade mais pobre da população global.
2) Uma proposta
O ex-presidente uruguaio, José Mujica, diz que não pretende fazer apologia da pobreza, e sim da sobriedade:
“O que proponho é dar as costas ao mundo dos desperdícios”, explica, “dos gastos inúteis e das casas impressionantes que precisam de dezenas de empregados. Para quê? Não precisamos disso, podemos viver com muito mais sobriedade e gastar os recursos em coisas que de fato são importantes.”
Mujica fala de casas. Mas o que ele diz se aplica a cidades. O lugar onde vive a maior parte da população do mundo. No Brasil, quase 90% das pessoas vive em cidades. É nas cidades que a vida acontece, onde se expressam com clareza cotidiana a brutal desigualdade dos 1% contra os 99% — podemos chamar de nós.
Esses 62 sujeitos são mais poderosos que países. Muito mais poderosos que governos. E infinitamente mais fortes que cidades e seus governos e seus moradores.
Um olhar para o desenvolvimento urbano
É esse o ponto que a arquiteta e urbanista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, Raquel Rolnik, aborda em um artigo publicado recentemente.
Ela não escreve especificamente a respeito de desigualdade (embora a ideia esteja implícita no texto), mas mostra como o interesse das grandes corporações associados aos partidos políticos e dirigentes direciona o desenvolvimento urbano nem sempre para o caminho mais sóbrio, pra usar a expressão do ex-presidente José Mujica, e mais útil para a sociedade.
A arquiteta aborda a crise de uma forma otimista, vista pelo ponto de vista do crescimento e desenvolvimento das cidades.
Para Raquel Rolnik (foto), um dos motivos principais da crise é a emergência –no sentido de tornar públicos, visíveis e conhecidos– dos mecanismos e relações que aliam o interesse de grandes empresas com os de grandes partidos políticos, e que, historicamente, têm enorme impacto na política urbana.
Ela escreve:
“É possível até mesmo afirmar que a política urbana tem sido, na sua quase totalidade, definida por essa relação, que tem o poder de determinar, a partir de acordos entre empresas, partidos e governos, que investimentos serão feitos, assim como onde e de que forma a cidade se desenvolverá“.
“Os anos de abundância de dinheiro, inclusive, alimentaram de forma avassaladora esta máquina perversa de associação entre interesses privados e as políticas públicas, com megaprojetos milionários e obras faraônicas de questionável necessidade”.
Esse é um ponto que considero muito importante e me fez pensar: ela diz “megaprojetos milionários e obras faraônicas de questionável necessidade”. Esse é o ponto pra mim: a necessidade. Será que precisamos mesmo de prédios de hospitais ou de serviços de saúde de qualidade?
Pensei na sobriedade de que fala Mujica.
Rolnik avança:
“Hoje esse modus operandi que exerce enorme influência no destino de nossas cidades está finalmente em xeque”.
“Assim, apesar das dificuldades que momentos de crise apresentam, esse é um primeiro elemento que pode ser muito positivo para o futuro de nossas cidades, desde que estejamos dispostos a ir até as últimas consequências para superar esse modelo, que envolve hoje, repito, a totalidade dos grandes partidos no Brasil”.
Transformar radicalmente esse modo de fazer política abre a perspectiva de que a política urbana possa de fato atender às necessidades dos cidadãos em cada cidade, e não às expectativas de lucro nos negócios de empresas financiadoras de campanhas, apoiadas em suas relações com partidos políticos e seus representantes nos legislativos e executivos país afora”.
Ela afirma isso e temos adiante uma campanha eleitoral que pela primeira vez proíbe a constribuição de empresas aos partidos e candidatos. Muita coisa terá que se repensada daqui pra frente.
“Para além disso, em função da crise econômica já estamos vivendo uma forte redução de investimentos públicos, e as pessoas já têm menos dinheiro no bolso e menos capacidade tanto de gastar como de poupar ou investir”.
“É claro que os efeitos da recessão são muito negativos, especialmente para a população mais pobre, que mais depende de políticas públicas. Mas existe um outro lado nessa história…”
Ela aborda outro ponto que considero fundamental: a crise provoca movimento, um sair obrigatório da zona de conforto. O que não é necessariamente ruim. É apenas diferente.
“Outros momentos de crise econômica e redução drástica na capacidade de gastos dos governos –penso especialmente nos anos 1990– mostraram-se muito férteis em termos de políticas municipais inovadoras, particularmente no campo da moradia e da política urbana”.
“Foi nesse período que conseguimos realizar experiências de construção de moradias populares com mutirões e autogestão dos moradores, avançamos nos processos de reconhecimento e urbanização de favelas, com programas implementados com a participação direta da população, desenvolvemos experiências de orçamentos participativos… enfim, foram tempos de escassez em que governos conseguiram se virar e mobilizar a população para enfrentar nossos grandes desafios”.
“A diferença é que, naquela época, novos partidos de expressão popular ainda estavam nascendo ou se consolidando, repercutindo anseios e necessidades da população em nível local. Foi quando administrações democrático-populares foram eleitas e políticas inovadoras, com profundo sentido redistributivo e desejo de radicalização democrática, foram experimentadas”.
“Tudo isso foi esvaziado, quando não totalmente desmontado, na era da abundância, quando até mesmo os novos partidos, já com grande presença no cenário político nacional, escolheram o caminho da velha forma de fazer política”.
“É importante que se diga, porém, que embora o mundo da política em geral esteja muito contaminado por essas velhas práticas, isso não significa que a totalidade dos parlamentares e detentores de cargos políticos tenha adotado esta posição”.
“Muitos foram marginalizados, ou sequer tiveram espaço para crescer dentro dos partidos, por não compactuar com tais práticas. O enorme desafio para todos que fazem política com seriedade é constituir novas lideranças capazes de ecoar os desejos de mudança que existem na sociedade”.
“As duas grandes incógnitas que 2016 nos coloca, portanto, são: se conseguiremos de fato desmontar e enterrar esse velho modo de fazer política, e se teremos capacidade de inovar na elaboração de políticas públicas para enfrentar o cenário econômico adverso”.
“Enfim, muitos atravessaram 2015 com perplexidade diante da atual situação”.
Raquel segue o caminho do otimismo. Eu também.
“Prefiro ser mais otimista e vislumbrar, no horizonte de 2016, a esperança de construção de mudanças profundas… se estes são tempos difíceis, que possam ser também tempos de transformação, inovação e criatividade para formular e implementar políticas alternativas, melhores e mais eficazes do que parte do que fizemos na farra dos anos de fartura”.
Pra mim, a sobriedade imposta por tempos de crise obriga a uma reflexão do que é realmente importante para cada um, para a cidade e pro mundo todo.
Quais os verdadeiros valores. O que devemos ter como fundamental, essencial em nossa existência.
Foto de abertura: Marcos Fernandes