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Em um artigo publicado esta semana em seu site, Leonardo Boff, analisa em profundidade as razões da falta de ética do Brasil.
Seu texto contundente convida a uma reflexão profunda neste momento de extrema gravidade, onde todo um trabalho de anos no sentido da construção de uma sociedade mais equilibrada está em risco.
Para Boff, o país, sob qualquer ângulo que o considerarmos, é contaminado por uma espantosa falta de ética.
“O bem é só bom quando é um bem para mim e para os outros; não é um valor buscado e vivido por si mesmo; mas o que predomina é a esperteza, o dar-se bem, o ser espertinho, o jeitinho e a lei de Gerson”.
Segundo explica ele, os vários escândalos que se deram a conhecer, revelam um falta de consciência ética alarmante.
“Diria, sem exagero, que o corpo social brasileiro está de tal maneira putrefato que onde quer que aconteça algum pequeno arranhão já mostra sua purulência”.
Das mentirinhas ao suborno
A falta de ética, explica Boff, se revela nas mínimas coisas, desde as mentirinhas ditas em casa aos pais, a cola na escola ou nos concursos, o subordo de agentes da polícia rodoviária quando alguém é surpreendido numa infração de trânsito, desviar dinheiros públicos, beneficiar-se de cargos, enganar nos preços, em jogar lixo na calçada e até em fazer pipi na rua.
Segundo ele, essa falta generalizada de ética deita raízes em nossa pré-história. É uma consequência perversa do que foi a colonização.
“Ela impôs ao colonizado a submissão, a total dependência à vontade do outro e a renúncia a ter a sua própria vida. Estava entregue ao arbítrio do invasor. Para escapar da punição, se obrigava a mentir, a esconder intenções e a fingir. Isso levava a uma corrupção da mente”.
“A ética da submissão e do medo leva fatalmente a uma ruptura com a ética. Quer dizer, começa a faltar com a verdade, a nunca poder ser transparente e, quando pode, prejudica seu opressor”.
O colonizado se obrigou, como forma de sobrevivência, a mentir e a encontrar um “jeitinho” de burlar a vontade do senhor, segundo Boff.
A Casa Grande e a Senzala são um nicho, produtor de falta de ética: pela relação desigual de senhor e de escravo.
“O ethos do senhor é profundamente anti-ético: ele pode dispor do outro como quiser pois é apenas uma “peça” como se dizia, a todo momento estava pronto a abusar sexualmente das escravas e a vender seus filhos pequenos para que não tivessem apego a eles. Nada de mais cruel, anti-ético e perverso do que a destruição dos laços de mãe e filhos”.
Esse tipo de ética desumana criou hábitos e práticas que, de uma forma ou de outra, continuam no inconsciente coletivo de nossa sociedade.
Maldade imperdoável
A abolição da escravatura ocasionou uma maldade ética imperdoável: alforiaram-se os escravos, mas sem fornecer-lhes um pedacinho de terra, uma casinha e um instrumento de trabalho. Foram lançados diretamente na favela.
E hoje por causa de sua cor e pobreza são discriminados, humilhados e as primeiras vítimas da violência policial e social.
A situação, em sua estrutura, não mudou com a República.
Os antigos senhores coloniais foram substituídos pelos coronéis e senhores de grandes fazendas e capitães da indústria. Aí as pessoas eram ultra-exploradas e feitas totalmente dependentes.
Os comportamentos não eram éticos no sentido do respeito mínimo às pessoas e à garantia de seus direitos básicos. A relação era de medo e de uso de violência ou repressão. Foram feitos carvão para a produção como costumava dizer Darcy Ribeiro.
As relações de produção capitalista (em si altamente questionáveis eticamente pela relação desigual entre capital e trabalho) que se introduziram no Brasil pelo processo de industrializção e modernização foram selvagens.
Nosso capitalismo, segundo as palavras de Boff, nunca foi civilizado pois nunca foi possível uma verdadeira luta de classes (que tem suas regras), no sentido de equilibrar os interesses antagônicos.
“Ele guardou sua voracidade de acumulação como nas origens no século XVIII e XIX o que se vê claramente no sistema bancário atual, cujas taxas de juros são das mais altas do mundo e os lucros exorbitantes”.
A exploração impiedosa da força de trabalho, os baixos salarios são situações eticamente malévolas pelo grau de desumanidade e de injustiça que encerram impondo privações e muito sofrimento às famílias.
Como superar essa situação que nos envergonha?
“Ela dura séculos e foi praticamente naturalizada. Como ouvi de uma pessoa ilustrada que acusava como corrupto um político honrado que eu defendia. Sua resposta foi típica: se roubou foi esperto e se não roubou foi um bobo. Assim não dá…”
Antes de fazer qualquer sugestão mínima, importa fazer uma auto-crítica, afirma Boff, que é um pensador cristão.
“Que educação deram as centenas de escolas católicas e cristas e as 16 universidades católicas (pontifícias ou não) a seus estudantes? Bastava terem-lhe ensinado o mínimo da mensagem de Jesus de amor aos pobres contra sua pobreza e comprometê-los em mudanças necessárias para que sua situação hoje fosse menos malvada”.
Elas se transformaram, em boa parte, nem todas, em chocadeiras dos opressores, diz ele.
De lá sairam diretores de empresas exploradores, economistas de um liberalismo feroz e funcionários públicos sem senso do bem comum, Segundo o motto estabelecido: “o que é de todos não é de ninguém, portanto, posso me apropriar dele tranquilamente”.
Para Boff, a catequese foi doutrinalesca, interessada mais na reta doutrina e menos no reto comportamento. Criou-se um cristianismo cultural que até prescinde da fé. Não foi um cristianismo de fé comprometida com a justiça social e com o destino das grandes maiorias pobres e discriminadas.
Como é possível que num país majoritariamente cristão vigore tanta injustiça, insensibilidade, discriminação social e humilhação de negros e pobres? Pergunta.
“Alguma coisa errada ocorreu em nossos processos de transmissão da mensagem libertadora e humanizadora de Jesus a ponto de os corruptos e corruptores cristãos, quase todos cristãos, sequer terem a má consciência do que fazem”.
O pensador lembra a resposta que o deputado Severino Cavalcanti, cassado de seu mandato por corrupção, deu a alguém que lhe perguntou se ia se suicidar: “não me suicido porque sou cristão”. Que signfificou para ele o fato de ser cristão? Nada.
Por isso, argumenta Boff, os que sairam das escolas cristãs não se distinguiram pela incidência social numa perspectiva de transformação. São antes pela manutenção do status quo do que por mudanças.
Nem por isso queremos olvidar nomes notáveis em vários estratos sociais para os quas o cristianismo foi uma escola de humanização e de compromisso com a sorte dos mais vulneráveis.
Infelizmente não foram eles que definiram o rumo de nossa história de corrupção.
Para superarmos a crise da ética não bastam apelos moralizantes
Para superarmos a crise da ética não bastam apelos moralizantes, sempre tão fáceis, mas uma transformação da sociedade, explica. Antes de ser ética, a questão é política, pois esta, a política, é estruturada em relações profundamente anti-éticas.
Já faríamos muito se assumíssemos a pregação do primo de Jesus, seu precursor, São João Batista, afirma Boff.
Aos que lhe perguntavam o que deviam fazer, respondia:
“Quem tiver duas túnicas, dê uma a quem não tem nenhuma, e o mesmo faça a quem não tem alimentos”.
Traduzindo para a nossa situação seria: “seja solidário e não deixe de ajudar os mais necessitados”.
Aos cobradores de impostos lhes dizia:
“Não exija mais do que a taxa definida”.
À polícia respondia:
“Não pratiques torturas nem chantagens contra ninguém (delação premiada?) e contente-se com seu salário.”
Boff continua.
Deixando para trás o permanente valor da mensagem ética de João Batista, diria para ser brevíssimo: tudo deve começar pela família.
Criar caráter (um dos sentidos de ética) nos filhos e filhas, formá-los na busca do bem e da verdade para não se deixarem seduzir pela lei de Gerson e evitar, sistematicamente, o jeitinho.
Princípio básico de toda e qualquer ética: tratar sempre humanamente a cada ser humano.
Tomar absolutamente sério a lei áurea que é testemunhada em todas as tradições culturais e religiosas: “não faça ao outro o que não quer que te façam a ti”.
Ou “ame o próximo como a ti mesmo” que na versão do evangelho de São João e de São Francisco é assim traduzida:”ame o outro mais que a ti mesmo”; “que eu procure mais consolar que ser consolado, mais compreender do que ser comprendido, mais amar do que ser amado.”
Siga o preceito de Kant: que o princípio que te leva fazer o bem, seja válido também para os outros.
Oriente-se pelos dez mandamentos, escritos na Bíblia como forma de ordenar a vida social do Povo de Deus e, que no fundo, são universalmente válidos.
Traduzidos para hoje: o “não matar” significa, venere a vida, cultive uma cultura da não violência.
O “não roubar”: aja com justiça e correção e lute por uma ordem econômica justa.
O “não cometer adultério”: amem-se e respeitem-se mutuamene, e obriguem-se a uma cultura da igualdade e pareceria entre o homem e a mulher.
Isso é o mínimo que poderíamos fazer para arejar um pouco a atmosfera ética de nosso país.
Repetindo o grande Aristóteles, o mestre da ética ocidental:
“Não refletimos para saber o que seja a ética, mas para tornarmo-nos pessoas éticas”.
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Na foto de abertura, favela da Rocinha, Rio de Janeiro. Imagem do Wikipedia, com permissão de uso.