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A socióloga Maria Lygia Quartim de Moraes apresenta as origens comunistas e socialistas do Dia Internacional da Mulher. Enquanto Isabel Cruz explica a importância de Clara Zetkin no movimento.
Recuperando as condições históricas, políticas e econômicas do surgimento do movimento de massas das mulheres, ela comenta a importância de figuras como Clara Zetkin e Aleksandra Kollontai na criação do Dia Internacional da Mulher, e como ele serviu de estopim para desencadear a Revolução Russa.
Refletindo sobre como a historiografia hegemônica buscou apagar e falsear o elo entre o feminismo e o socialismo nas origens do 8 de março, para produzir uma celebração mais domesticada e até comercializável do Dia Da Mulher, ela defende uma retomada radicalidade da data como um dia da luta.
Clara Zetkin e o 8 de Março
por ISABEL CRUZ, de O Militante
Razões históricas de uma data
A proposta de Clara Zetkin de criação de um Dia Internacional da Mulher, aprovada em 1910, estipulava uma acção internacional comum pela emancipação das proletárias e pelo sufrágio universal:
«Em acordo com as organizações políticas e sindicais do proletariado nos seus respectivos países, as mulheres socialistas de todos os países organizarão todos os anos um dia das mulheres que, em primeiro lugar, será consagrado à propaganda a favor do voto das mulheres (…). Este dia das mulheres deve ter carácter internacional e ser cuidadosamente preparado».
Esta proposta de Clara Zetkin não foi um acto isolado. Correspondeu à necessidade de dar um forte impulso à luta organizada das operárias, numa época em que a entrada massiva das mulheres no trabalho fabril e o desenvolvimento do movimento comunista conduziram à intensificação da luta das mulheres por melhores condições de trabalho, melhores salários e por direitos sociais e políticos.
Consciente da importância decisiva da participação das mulheres trabalhadoras na transformação da sociedade, Clara Zetkin assumiu um papel notável na dinamização e na luta organizada das trabalhadoras e na incorporação das reivindicações específicas das mulheres no movimento operário e comunista.
A data do primeiro Dia Internacional da Mulher não foi uma escolha ao acaso. A indicação do mês de Março está associada a dois acontecimentos de importância simbólica para o proletariado: a revolução alemã (Março, 1848) e a Comuna de Paris (Março, 1871), acontecimento de grande alcance histórico que deu forte impulso à luta do proletariado em todo o mundo.
A 19 de Março de 1911, o sucesso da primeira celebração foi considerável – a maior manifestação do movimento pela emancipação das mulheres, com mais de um milhão de mulheres nas ruas das cidades da Alemanha, Suíça, Áustria e Dinamarca. Só em Berlim foram realizadas 42 reuniões em simultâneo e centenas de outras em toda a Alemanha. No final das reuniões, as mulheres desfilavam pelas ruas empunhando cartazes. Na Áustria, mais de 30 mil mulheres manifestaram-se nas ruas de Viena –, como relatou Clara Zetkin no Die Gleichheit.
Em 1912, as manifestações na Alemanha foram menos numerosas mas mesmo assim impressionantes: 1200 mulheres reuniram-se em Essen, 1000 em Leipzig e em Erfurt. Na maior parte das vezes, as mulheres desfilavam, disciplinadas e pacíficas, sem que a polícia interviesse. Outras vezes, como em Dusseldorf e em Berlim, a polícia espancava e prendia.
Na Suécia, realizaram-se enormes manifestações de mulheres em 1912 e 1913. Em 1913, apesar da repressão tsarista, as revolucionárias russas celebram o dia em reuniões clandestinas em algumas cidades: Moscovo, Kiev, S. Petersburgo, entre outras. Em 1914, em Paris, mais de 20 000 mulheres estiveram presentes na primeira celebração francesa.
É só a partir de 1917 que se estabelece a data de 8 de Março para as comemorações do Dia Internacional da Mulher. No dia 23 de Fevereiro do calendário gregoriano (8 de Março no calendário juliano), as mulheres russas manifestam-se em S. Petersburgo, exigindo pão, o regresso dos maridos enviados para a frente da guerra, a Paz e a República. A greve estende-se rapidamente a todo o proletariado. Em poucos dias a greve de massas transforma-se numa insurreição e ao fim de cinco dias cai o império russo.
O Dia Internacional da Mulher Trabalhadora tornou-se um momento privilegiado de agitação entre as proletárias politicamente menos conscientes. Um dia que reforçava a solidariedade internacional entre as trabalhadoras na luta por objectivos comuns e uma demonstração da sua força organizada. Um contributo importante para o seu envolvimento político, um dia de «militância das mulheres trabalhadoras que ajuda a aumentar a consciência e a organização das mulheres proletárias».
Organizar a luta
Transformar a condição social das trabalhadoras
De fato, consciente da importância decisiva de aumentar a sua consciência social e política, fortalecendo assim a luta do conjunto do movimento operário e revolucionário, Clara Zetkin dedicou a sua vida à dinamização da organização entre as trabalhadoras na Alemanha e em diversos países.
Concentrou muita da sua actividade na criação da organização das trabalhadoras, destacando o papel da sua participação nos sindicatos, e na aprovação de orientações claras para a luta organizada das mulheres no seio dos partidos comunistas nos diversos países.
Para Clara Zetkin «pretender transformar a condição das mulheres sem abolir o modo de produção capitalista conduziria as trabalhadoras a um beco sem saída, observando que as “reformas” que o próprio sistema levava a cabo serviam para atenuar um pouco a vida das mulheres mas não daria êxito ao objectivo de transformação da condição social das mulheres das classes trabalhadoras, nem permitiriam efectivar o conjunto dos direitos económicos, sociais, políticos e culturais».
Clara Zetkin advertiu que a igualdade jurídica e política (direitos pelos quais se bateu!) não seriam condição suficiente (ainda que necessária) para transformar a situação das mulheres das classes trabalhadoras: «A emancipação da mulher, como a de todo o género humano, só se tornará realidade no dia em que o trabalho se emancipar do capital. Só na sociedade socialista as mulheres, como os trabalhadores, tomarão posse plena dos seus direitos».
A luta pelo direito ao voto
A maior parte das referências historiográficas às lutas pelo direito ao voto das mulheres atribui um lugar de destaque às sufragistas, ou a movimentos de mulheres da classe média, ocultando a posição dos movimentos de mulheres operárias e socialistas, afirmando, por exemplo, que estes consideravam os direitos políticos das mulheres subordinados ao avanço econômico dos homens da classe trabalhadora. Mas, na verdade, antes do final do século XIX, o direito das mulheres ao voto integrou os programas dos partidos operários europeus como exigência do sufrágio universal para os dois sexos.
Na Alemanha, como em outros países da Europa, a luta pelo direito ao voto não foi liderada pelas mulheres da classe média, ou pelas suas organizações, mas pelas mulheres das organizações proletárias, cujo movimento mais impressionante foi sem dúvida o das mulheres do Partido Social Democrata da Alemanha (SPD), lideradas por Clara Zetkin.
Tais factos, apesar de largamente documentados, são deliberadamente «esquecidos» por algumas historiadoras, ocultando o papel de Clara Zetkin e dos partidos operários e revolucionários nesta luta.
Clara Zetkin defendia que a luta das proletárias pelo sufrágio directo e universal intensificava a luta geral do proletariado pela sua libertação e era imprescindível para a mobilização e educação política das proletárias. Ao contrário das burguesas, Clara Zetkin não considerava o voto das mulheres como o «objectivo final», porque a concessão do direito ao voto não bastava «para suprimir o antagonismo de classe entre exploradores e explorados» .
Como o referiu em 1907: «O direito ao voto ajuda as mulheres da burguesia a derrubar as barreiras que, sob a forma de privilégios masculinos, limitam as suas possibilidades de acesso à educação e à vida profissional. E arma as mulheres proletárias na luta que levam a cabo contra a exploração e a dominação de classe para conseguirem ser reconhecidas como seres humanos de corpo inteiro.»
Na Conferência Internacional de Mulheres, em 1910, foi aprovada nova resolução sobre o direito ao voto para as mulheres: «… o sufrágio universal, atribuído a todas as maiores de idade e que não dependa da propriedade, nem do imposto, nem do grau de cultura, nem de outras condições que excluam os membros da classe operária do gozo deste direito».
As divergências existentes entre os movimentos de mulheres burguesas e proletárias reflectem que também a luta pelo direito ao voto foi dominada pelo antagonismo de classe que decorre dos interesses próprios das mulheres de cada classe social. De facto, o voto das mulheres das classes dominantes significava apenas o fim dos privilégios dos homens da mesma classe e por isso não alterava qualquer relação de poder entre as classes sociais.
Dar a conhecer a vida e a obra desta comunista, que tem sido ocultada e esquecida na(s) História(s) das mulheres e dos Feminismos, foi a razão que levou à publicação, em 2007, do livro Clara Zetkin e a luta das mulheres. Uma atitude inconformada. Um percurso coerente, das Edições «Avante!», na passagem dos 150 anos do seu nascimento.