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Se o uso intensivo das tecnologias da informação e comunicação não for acompanhado pela soberania sobre os dados que produzimos, as consequências sociais e políticas podem ser gravíssimas.
Marco Konopacki
A Democracia está seriamente em risco. Apesar de estarmos percebendo uma ampliação nas formas de expressão e trocas intersubjetivas, se o aumento do uso não vier conjugado com a soberania sobre os dados que produzimos, o uso intensivo de tecnologias de comunicação pode produzir consequências sociais e políticas que fariam qualquer democracia desmoronar.
As plataformas de comunicação e mídias sociais acumulam uma quantidade enorme de dados sobre seus usuários. A desculpa para coletar estes dados é de que eles são utilizados para promover uma melhor experiência sobre o uso dessas plataformas através do uso de técnicas de inteligência artificial. O Facebook, por exemplo, aprende com as experiências dos usuários e oferece um conteúdo sob medida aos seus interesses. Logo, se alguém gosta muito de ver “gatinhos” na internet, é muito provável que o Facebook priorize exibir “gatinhos” para esta pessoa, assim como toda publicidade estará associada a “gatinhos”.
Da mesma maneira, o Google aprende com as pesquisas feitas pelos seus usuários no mecanismo de busca. Todo seu histórico de pesquisas é guardado e, quando você faz uma nova pesquisa, o Google tenta inferir o que você está buscando. Os resultados apresentados dão relevância a conteúdos que tenham uma maior probabilidade de afinidade com suas preferências. Tente buscar um conteúdo da maneira que você faz normalmente e depois faça a mesma pesquisa usando o modo anônimo do seu navegador! Os resultados serão bastante diferentes.
Praticamente todos os serviços na internet estão procurando de alguma forma aproveitar a informação produzida por seus usuários no uso de suas ferramentas para construir rotinas de aprendizado automático. Isso quer dizer que, quanto mais o Facebook e o Google são utilizados, mais eles aprendem e mais chances ele tem de oferecer o conteúdo certo na hora certa. Talvez esses dois exemplos não sejam novidade: há tempos grupos ligados a direitos de internet e ativistas vêm alardeando essa questão. Mas, apesar de muitos chamarem a atenção sobre a concentração e o aumento de poder das grandes corporações de conteúdo, as consequências relacionadas à concentração e direcionamento de conteúdo estão acontecendo ao mesmo tempo em que as relações sociais e políticas estão sendo transformadas por este fenômeno.
Quando as pessoas passam somente a ver e ter contato com aquilo que está próximo a elas, a tendência é que se crie um isolamento em torno dos temas a que essa pessoa têm acesso. Imediatamente a tendência é que as bolhas de conteúdo cresçam e os círculos de interação das pessoas fiquem restritos somente às suas preferências. Isso significa a criação de uma monocultura temática, que fortalece a intolerância e a dificuldade em se observar problemas por diferentes pontos de vista. As democracias, mais especificamente as instituições políticas, ainda não se atualizaram para a nova realidade social e tecnológica. Elas ainda parecem resistir para tentar manter sua velha forma de trabalhar, baseada no poder em torno de representantes eleitos e com pouca ou nenhuma abertura para participação popular. As poucas iniciativas de abertura são as consultas públicas, mas que não exploram totalmente o potencial que as novas tecnologias de comunicação e informação proporcionam.
Ao não se adequarem a essa nova realidade, as instituições políticas estão deixando um vácuo político que está sendo ocupado pelas grandes corporações de conteúdo. Ao influenciarem os usuários na construção de suas preferências, estas empresas acabam exercendo um forte poder político, mesmo que este não seja seu principal objetivo. O processamento de informação é o seu objetivo de negócio e a aplicação da inteligência artificial para tornar seu conteúdo atraente sempre será o diferencial na sua atuação. O principal problema nisso é que estas corporações são guiadas por interesses privados, com poucas rotinas de accountability, e baseiam sua atuação em algoritmos não auditáveis.
O debate recente em torno das fake news e da influência das mídias sociais em eleições é o sintoma mais flagrante do potencial que certas plataformas têm de influenciar a política. A alta concentração desse poder nas mãos de poucas corporações poderá produzir no futuro um sequestro da política e a privatização da visão sobre bens comuns. Por isso é urgente imaginar como desconcentrar esse poder, devolvendo o caráter público que a política deve ter.
Para isso, é preciso que o pensamento político contemporâneo inclua nos seus debates formas de incluir a tecnologia no exercício da política e isso deve passar por alguns princípios e diretrizes:
- a descentralização dos sistemas de informação: não podemos pensar que a concentração da produção e controle da informação possa ser distribuído por um só ponto;
- fazer com que os usuários sintam-se responsáveis pela informação que produzem e compartilham, construindo mecanismos de pertencimento e participação na interação com outros usuários;
- aumentar a transparência das práticas políticas como forma de aumentar a confiança e incentivar a práticas participativas dos usuários;
- dar autonomia para os usuários construírem seus próprios filtros de informação, não filtrar de antemão a informação que chegam até eles;
- fortalecer a diversidade social, étnica, econômica e política das redes de informação;
- construir protocolos abertos que permitam uma melhor interoperabilidade entre diferentes plataformas e sistemas, o que passa também pelo incentivo ao uso de programas de código aberto; e
- incentivar o comportamento responsável dos cidadãos através do seu aprimoramento para o uso de ferramentas digitais, apoiados por assistentes digitais e ferramentas de coordenação para atuação coletiva.
A aplicação desses princípios e diretrizes na atuação política pode ser capaz de transformar o próprio exercício da política e de como os cidadãos e cidadãs participam dela. As tecnologias de comunicação e informação diminuíram os custos de participação na política no seu modelo tradicional. Consultas públicas online permitiram que milhares de pessoas pudessem intervir em canais institucionais e elas também criaram uma forma das instituições ouvirem as preferências de cidadãos e cidadãs sobre temas de interesse público. No entanto, esse modelo já está chegando ao seu ponto de saturação e, com ele, tornaram-se expostas às limitações de um modelo político que ainda não se transformou para as novas oportunidades que a tecnologia pode oferecer.
O ponto de inflexão no uso da tecnologia aplicada a política está justamente em como permitir que os cidadãos e cidadãs possam transformar a política mais inclusiva e deliberativa. Consultas públicas, mesmo aquelas que permitem o diálogo entre seus participantes, ainda têm um caráter de coleta de opiniões e incentivam pouco que os usuários produzam deliberações complexas e cheguem a consensos a partir da apresentação e discussão de diferentes pontos de vista. A inteligência artificial aplicada a esse tipo de processo pode produzir mais reciprocidade entre os argumentos e a conexão de diferentes pontos de vista, conectando pontos que estavam dispersos pela imensa massa de informação geradas nestes processos. Grupos historicamente excluídos têm a oportunidade de fazer sua voz ser ouvida e a tecnologia pode favorecer a equidade participativa entre grupos heterogêneos.
Inovações democráticas no campo digital também podem construir sistemas mais transparentes e auditáveis. A blockchain é a principal ferramenta para implementação desta transformação. Basicamente a blockchain é uma rede de dados distribuída baseada na confiança entre os pares que estabelecem sua autenticidade através de chaves de criptografia compartilhada. Gestores públicos podem se utilizar dessa rede para publicar ações governamentais que poderiam ser auditadas por qualquer cidadão. Prestação de contas e gastos governamentais poderiam ser publicados e, uma vez nessa rede, estariam impedidas quaisquer tentativas de manipulação ou fraude com esses dados. Por parte dos cidadãos, estes poderiam compartilhar dados relacionados à mobilidade urbana ou sobre aparelhos de uso público, como praças e escolas. Estes dados seriam distribuídos de maneira descentralizada e sem depender de plataformas centralizadas responsáveis por recebê-los. Por um lado, cidadãos e cidadãs passariam a ter mais soberania na gestão desses dados; por outro, gestores públicos os aproveitariam com alto grau de confiança e validação compartilhada para orientar suas políticas públicas.
Por fim, inovações democráticas digitais têm a possibilidade de tornar o Estado mais responsivo através do engajamento da população para formulação e aplicação de leis. É preciso que a população retome o controle sobre a agenda pública, hoje pautada por grandes meios de comunicação e por políticos tradicionais que muitas vezes respondem a interesses privados sem estarem conectados ao interesse público. No Brasil, especialmente, o instituto da proposição de leis de iniciativa popular existe desde a promulgação da Constituição de 1988, mas desde então apenas quatro leis de iniciativa da população foram aprovadas no Congresso nacional. A principal barreira que limita o exercício desse direito é a necessidade de coletar em papel as assinaturas necessárias para apresentação de um projeto de lei. As tecnologias digitais têm a possibilidade de facilitar a coleta de assinaturas para proposição de leis dando maior segurança e confiança a processos como estes.
Em suma, as contradições imanentes dessas transformações sociais e políticas podem sugerir um futuro ameaçador e autoritário com a morte da democracia e a ditadura de robôs promotores da intolerância dominados por uma pequena elite econômica. Mas por ser uma contradição, ela contém o elemento emancipador em si, e esse mesmo processo poderá produzir uma sociedade melhor do que hoje, em que a tecnologia contribua para nosso próprio entendimento enquanto sociedade. Só a apropriação crítica das tecnologias de informação e comunicação poderão permitir pensarmos em aplicações que promovam a emancipação humano e não o seu aprisionamento e dominação.
Marco Konopacki é doutorando em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais. Graduado em Administração e Mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná. Artigo publicado pelo site OpenDemocracy