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Por Renata Marquez, com fotos de Cor Jaring, publicado originalmente na revista Piseagrama
A história do PROVO, grupo da contracultura holandesa atuante nos anos de 1960, coincide com as origens das bicicletas compartilhadas. O Plano das Bicicletas Brancas escrito por Luud Schimmelpennink acabou perdendo a radicalidade da autogestão mas ainda povoa imaginários e iniciativas recentes.
Luud Schimmelpennink é diretor do Centro Ytech de Inovação da Prefeitura de Amsterdã desde 2007. Desenhista industrial de formação e político atuante, Schimmelpennink completou 81 anos no final de maio passado e é, portanto, a memória viva da história das bicicletas compartilhadas. Sim, elas têm uma história. Trata-se, na verdade, de uma contra-história do progresso inspirada, no seu início, nos preceitos do anarquismo, na prática do autogoverno, no repúdio aos carros e na aposta em uma cidade mais livre, coletiva, feliz, desperta.
Tudo começou no ano de 1965 em Amsterdã, quando Schimmelpennink era um dos jovens atuantes nas ações urbanas que vieram a ser reconhecidas como de autoria do grupo PROVO. Um grupo bastante curioso, por um lado, pela heterogeneidade e fluidez dos participantes (“o provotariado é uma multidão anônima de elementos subversivos”) e pela ironia dos seus manifestos, e, por outro, por algumas táticas urbanas tão certeiras que nos provocam levam a trazer o PROVO das profundezas da contracultura holandesa para as discussões mais avançadas de políticas públicas atuais.
Se, naquele início em Amsterdã, as bicicletas compartilhadas eram brancas, hoje sabemos que elas podem ser vermelhas, laranjas, verdes, azuis, prateadas, etc. O branco foi a cor estratégica para sinalizar as primeiras bicicletas comunitárias holandesas, porque as ações em prol delas – assim como em prol de outras pautas urbanas – eram sobretudo noturnas e, sendo brancas, elas tinham maior visibilidade. Mas não foi apenas a cor das bicicletas que mudou no decurso de cinco décadas. As bicicletas brancas de 1965 foram, dentre todas as multicoloridas, as únicas radicalmente autogeridas – ainda que durante algumas poucas horas.
O caráter de autogestão foi dado justamente por Schimmelpennink que, em meio aos a happenings e outras provocações do PROVO, fez cálculos e planejou a viabilidade das bicicletas brancas para a prefeitura. A mistura explosiva entre conhecimento técnico, filosofia anarquista e manifestação artística gerou uma série de eventos urbanos que atraíam multidões e surpreendiam a polícia. As bicicletas brancas eram deixadas nas ruas de Amsterdã para pertencerem “a todos e a ninguém”, mas eram irremediavelmente apreendidas por uma truculenta polícia que se apressava em desfazer aquela discreta sinalização branca de autogestão urbana.
As bicicletas brancas constituem, portanto, a primeira geração de bicicletas comunitárias. Depois, vieram as bicicletas geridas por comunidades locais ou ONGs, as bicicletas com moedas e, finalmente, a partir de meados de 2000, a terceira geração de bicicletas comunitárias que são as conhecidas bicicletas inteligentes, com tecnologia de informação e patrocinadores. Hoje são cerca de 806.000 bicicletas em 50 países, em 712 cidades. Embora o uso ainda seja livre em algumas cidades como, por exemplo, em Aarhus, na Dinamarca, as bicicletas compartilhadas de hoje perderam, em sua grande maioria, a radicalidade da autogestão branca para abraçar o protocolo da mercadoria e estampar a logomarca de seus diversos e grandes investidores, fenômeno de política apaziguadora e amistosa via parceria público-privado nas maiores cidades do mundo.
Em paralelo a outros movimentos contraculturais da mesma época, PROVO, abreviatura de provocador, apresentava uma peculiaridade: seus integrantes não queriam, como escreveu Matteo Guarnaccia em seu livro sobre o grupo, “cair fora”, pelo contrário, desejavam permanecer dentro da cidade, confrontando o poder, redesenhando os limites da atuação territorial desse poder e experimentando as possibilidades de uma vida urbana mais acolhedora. “PROVO tem consciência de que no final perderá, mas não pode deixar escapar a ocasião de cumprir ao menos uma quinquagésima e sincera tentativa de provocar a sociedade”, anunciaram.
Sua arena eram os espaços públicos de Amsterdã, sobretudo a pracinha Spui, onde havia uma pequena estátua de bronze de um Lieverdje – um popular moleque de rua – financiada pela empresa de cigarros Crescent. Guarnaccia aponta que tudo começou com Robert Jasper Grootveld que, revoltado com a milionária e liberada indústria do fumo, se transforma no mago antifumo resolvendo, em vez de parar de fumar, fumar todos os cigarros das pessoas que encontra pelo caminho: “ao me expor, coloco vocês em frente ao problema, eu sou o problema!”.
Em seguida, Roel Van Duijin, ideólogo anarquista em busca de possíveis revolucionários na classe ociosa (em vez de procurá-los na classe trabalhadora), percebe que, na Spui, reuniam-se, periodicamente, massas com potencial anarquista, os rebeldes seguidores de Grootveld. E é justamente ali que começa a distribuir, junto com Rob Stolk, os seus panfletos. “Provocar as autoridades, o Estado, a propriedade privada, os grandes magnatas cheios de poder, o militarismo e a bomba. Neste particular período histórico, os anarquistas têm de se tornar PROVOS. Não podem mais ter esperança numa revolução: a única arma que lhes restou é provocar as autoridades”, relatou Van Duijin.
Em julho de 1965, sai o primeiro número da revista PROVO, com apenas 500 cópias mimeografadas. Uma das estratégias mais exitosas de distribuição das publicações foi escondê-las entre as páginas dos jornais matutinos. Assim que notavam a invasão, esses jornais logo faziam uma campanha feroz contra o PROVO, o que acabava, entretanto, ajudando enormemente na divulgação e circulação das ideias do grupo.
Às performances de Grootveld seguiu-se uma série de happenings, jogos, invasões, incêndios, antipresentes (para a monarquia) e antifestas (de novo para a monarquia), protestos e contrapublicidades produzidos, muitas vezes, com fundos beneficentes concedidos por apoiadores do grupo. O happening ou a “nova arte concreta”, como a definia o seu criador Allan Kaprow ainda no final da década de 1950, propunha trazer a total concretude da vida cotidiana à arte por meio da não separação entre público e espetáculo e pela ação de pessoas comuns como atores de um teatro sem texto nem representação no qual a improvisação, o acaso e a espontaneidade guiavam a cena em espaços comuns variados. Os PROVOS não pestanejaram: “Nós organizamos happenings. O happening é nossa contribuição para o desenvolvimento fora do qual as autoridades querem nos manter”.
A novidade é o happening como contribuição para o desenvolvimento. Num dia especialmente nervoso, a polícia anuncia que o happening havia sido proibido. Esse anúncio testemunha o surpreendente compartilhamento de repertório e a eficácia da tática artística que, baseada na imprevisibilidade e na “participação do público”, invariavelmente desnorteava a polícia, apavorada com os happenings. No happening PROVO, estava criada a aproximação entre arte e política nos termos da invenção de novos mundos compartilháveis pela experiência vivida nas ruas.
No número 9 da revista PROVO, foi publicado o Plano das Galinhas Brancas: “a polícia, abalada em seus alicerces por novas formas de expressão artística, mais de uma vez demonstrou ser totalmente inapropriada para suas tarefas”. Eles sugeriam que a polícia (vulgo galinha branca) não ficasse mais sob a jurisdição da prefeitura, mas, sim, da Câmara dos Vereadores da cidade. Conforme as prescrições do Plano, essa espécie de “trabalhador social do futuro”, os policiais, deveria se locomover em bicicletas brancas e cuidar da manutenção de todas as outras bicicletas brancas espalhadas pela cidade. Além disso, a polícia também “ficará encarregada da distribuição de curativos, ataduras e medicamentos nas situações de emergência. Sempre estará guarnecida de fósforos e preservativos e também de laranjas e coxas de galinha para o provotariado esfomeado”.
A construção da nova imagem da polícia como trabalhador social do futuro – incrementada, é certo, com a intrusão lúdico-performática de laranjas e coxas de galinha – era exatamente oposta à atuação da polícia diante das manifestações PROVO. Ela vinha em peso reprimindo os happenings. O fotógrafo Cor Jaring, que ficou internacionalmente conhecido com a imagem em que registrou John Lennon e Yoko Ono em seu protesto Bed-in no quarto 702 do Hotel Hilton de Amsterdã em 1969, registrou muitas das ações do grupo nas ruas da cidade naqueles anos e, a respeito de um dos confrontos entre a polícia e o PROVO, relatou: “Nunca tinha visto rostos tão cruéis, corruptos, repugnantes como aqueles que eu via naquele momento. Lá estavam eles, com as carrancas contraídas, sovando aquela massa humana”.
Em poucos meses, graças à propaganda advinda da violenta repressão policial às ações do grupo e da apreensão das publicações, as 500 cópias iniciais passarão a 20 mil cópias do décimo quinto e último número, lançado em março de 1967. O dinheiro das vendas da publicação somado ao valor em dinheiro que cobravam para conceder qualquer entrevista à mídia permitiu a compra de uma máquina de impressão offset, e a revista deixou de ser mimeografada. As explosões brancas acabaram sendo patrocinadas e divulgadas involuntariamente pela mídia.
No final de julho de 1965, PROVO apresentava, diante do Lieverdje, o primeiro Plano Branco da série dos oito planos elaborados para “tornar a cidade mais acolhedora”. Idealizado por Schimmelpennink, o Plano das Bicicletas Brancas conclamava:
“Povo de Amsterdã!
Basta com o terror asfáltico da burguesia motorizada! Todo dia, as massas oferecem novas vítimas como sacrifício ao último patrão a quem se dobraram: a autoautoridade. O sufocante monóxido de carbono é seu incenso. A visão de milhares de automóveis infecta ruas e canais.
O Plano Provo das Bicicletas nos libertará desse monstro. Provo lança a bicicleta branca de propriedade comum. A primeira bicicleta será apresentada ao público quarta-feira, 28 de julho, às três da tarde, no Lieverdje, o monumento ao consumismo que nos torna escravos.
A bicicleta branca nunca terá cadeados. A bicicleta branca é o primeiro meio de transporte coletivo gratuito. A bicicleta branca é uma provocação contra a propriedade privada, porque a bicicleta branca é anarquista! A bicicleta branca está à disposição de quem quer que dela necessite. Uma vez utilizada, nós a deixamos para o usuário seguinte. As bicicletas brancas aumentarão em número até que haja bicicletas para todos, e o transporte branco fará desaparecer a ameaça automobilística. A bicicleta branca simboliza a simplicidade e higiene diante da cafonice e da sujeira do automóvel. Uma bicicleta é algo, mas quase nada!”
Um mês depois, Schimmelpennink encaminhava uma proposta com teor mais técnico à prefeitura da cidade. “Propomos que a Prefeitura adquira 20 mil bicicletas brancas ao ano (custo: um milhão de florins) como integração do transporte público. Tais bicicletas brancas pertencerão a todos e a ninguém.” E convidava os interessados em colaborar com a meta a pintarem as suas bicicletas num encontro coletivo à meia-noite na Spui, em frente ao Lieverdje.
O K de kanker (câncer) que havia aparecido primeiramente como intervenção antifumo de Grootveld nos cartazes de propaganda de cigarro migrou, com o PROVO, para as publicidades de automóveis, evidenciando o caráter político que as ideias de muitos somaram ao esoterismo inicial do mago Grootveld. A ameaça da onipresente fumaça dos carros é o tema da revista número 6, enquanto o número 13 foi dedicado aos acidentes automobilísticos, lançando o Plano do Cadáver Branco.
A campanha antiautomóvel tem muito sucesso. Pessoas começam a perseguir os carros mais poluidores e os motoristas mais indisciplinados, arrancando escapamentos e limpadores de para-brisas. Grupos caminham nervosos por cima dos carros que impedem a passagem de pedestres. “Os táxis e os meios de transporte de utilidade pública terão que funcionar com motores elétricos e alcançarão uma velocidade máxima de 40 quilômetros por hora. […] Os automóveis são meios de transporte perigosos e totalmente inapropriados para a cidade. Existem meios melhores e tecnicamente mais sofisticados para nos deslocarmos de uma cidade para outra. O automóvel representa uma solução ultrapassada para esse tipo de utilização”, sentenciaram.
Aos planos já mencionados juntam-se o Plano das Mulheres Brancas, o Plano das Chaminés Brancas – também escrito por Schimmelpennink, o plano sugeria o monitoramento de substâncias tóxicas eliminadas no ar pelas chaminés, aplicando multas e conferindo responsabilidade por infraestrutura, vazamentos, tipo e quantidade de resíduo –, o Plano da Moradia Branca, o Plano das Crianças Brancas e o Plano do Carro Branco.
Schimmelpennink dizia que o Plano das Bicicletas Brancas foi apenas algo simbólico que se tornara sério mesmo quando ele entrou na Câmara dos Vereadores, dois anos depois, já em 1967. Do simbólico ao executivo; da margem à institucionalidade. Em 1º de junho de 1966, houve eleições para a Câmara dos Vereadores de Amsterdã. PROVO, não sem controvérsias, decide candidatar-se. A chapa de número 12 inspirava: “Votem PROVO para ter tempo bom”.
Os panfletos e cartazes da campanha eleitoral foram impressos naquela máquina de impressão offset comprada com o auxílio acidental da polícia. As peças gráficas eram impressas e tinham que ser continuamente substituídas, porque eram roubadas instantaneamente por admiradores dos artistas do PROVO tão logo eram afixadas nos muros. PROVO apresentou 13 candidaturas, dentre elas a de Luud Schimmelpennink, e decidiu que, em caso de vitória, a cadeira seria ocupada por cinco pessoas diferentes durante o mandato de cinco anos, uma ao ano, em rodízio. Ao final das eleições, a chapa 12 consegue 13 mil votos e conquista uma cadeira na Câmara. Bernhard De Vries assume, mas resolve deixar o cargo. Schimmelpennink, então, entra em seu lugar.
“Minha ideia era que o município de Amsterdã iria distribuir 10.000 bicicletas brancas na cidade, para que todos pudessem usar”, explicou Schimmelpennink. Um sistema poderoso de transporte público individual. “Eu fiz cálculos sérios que resultaram no dado de que uma bicicleta branca – por pessoa, por quilômetro – custaria, para o município, apenas 10% do que gastava com transporte público por pessoa e por quilômetro.” Mas a prefeitura não aprovou a proposta, considerando a bicicleta algo ultrapassado e apostando no carro como o investimento do futuro. Schimmelpennink não se intimidou e resolveu desenvolver um sistema de carros elétricos compartilhados conhecidos como Witkarren.
Os Witkarren apareceram nas ruas de Amsterdã em 1974, com apenas uma estação e quatro carros elétricos, e circularam durante dez anos. Entretanto, nunca chegaram a compor uma rede tal qual prevista por seu idealizador. Na opinião de Schimmelpennink, para chegar à sua eficácia, o sistema precisaria de no mínimo 25 estações.
Confiante, sobretudo, nas bicicletas, Schimmelpennink foi chamado a Copenhague em meados da década de 1990 para pensar o que viria a ser o primeiro sistema de bicicletas compartilhadas instalado, que funcionava com uma moeda. “Um momento decisivo na história das bicicletas compartilhadas”, aponta. A partir de então, Schimmelpennink foi acionado por um investidor francês para implantar sistemas de bicicletas compartilhadas em Viena, Lyon e Paris, no período de 2002 a 2007. Hoje, o sistema de Paris conta com mais de 20 mil bicicletas e, em toda a França, há cerca de 43 mil bicicletas em 38 cidades.
“Sempre tive uma paixão pelo progresso”, disse Schimmelpennink. Mas se trata de uma noção de progresso que, ainda que contra-hegemônica, hoje se faz urgente. Uma noção de progresso que não separa, como forças dicotômicas, o desenvolvimento tecnológico de um lado e as formas de conhecimento que privilegiam a busca do bem e da felicidade ou a continuidade entre sujeito e objeto, entre natureza e cultura, entre homens e mulheres e entre seres humanos e não humanos de outro. Schimmelpennink tenta aproximar e fazer coincidir essas duas forças desiguais.
E Amsterdã? Bem, em 1999, foi lançada uma nova versão das Bicicletas Brancas desenhada por Schimmelpennink. Entretanto, elas não eram mais gratuitas e sim gerenciadas pelo banco holandês Postbank. O projeto começou com 250 bicicletas e cinco estações, mas o banco logo percebeu que o negócio não era rentável e retirou-se da iniciativa, o que levou ao fim do projeto. Quase 40% dos deslocamentos em Amsterdã são feitos de bicicleta, o que demonstra quão amistosa ao ciclismo a cidade é, mas fato é que Amsterdã nunca teve instalado outro Plano de Bicicletas Brancas.
Em 2012, a estátua do Lieverdje foi novamente atacada, mas, dessa vez, não foi um happening. Ironicamente, o moleque que testemunhou silenciosamente toda a série de investidas do PROVO foi danificado por um veículo motorizado – o autoautoritário inimigo do PROVO –, um caminhão que engatava uma infeliz marcha à ré e precisou ser retirado para restauração.