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Em seu mais recente livro, Unidade contra o 1%: Quebrando Ilusões, Semeando a Liberdade, a cientista e ativista ambiental Vandana Shiva alerta: “Precisamos de uma convenção global sobre a privacidade digital”.
Vandana Shiva, fundadora da organização não governamental Navdanya, que promove a biodiversidade de sementes, a agricultura biológica e os direitos dos agricultores na Índia e uma das pensadoras mais influentes da atualidade, é clara ao apontar os riscos do uso da comunicação digital para a manipulação das mentes:
“Precisamos recuperar a nossa liberdade e dizer ao senhor Facebook: “estes são os meus dados privados não são seus para vender à Cambridge Analytica. Temos de recuperar as nossas comunicações, o nosso conhecimento, as nossas sementes, a biodiversidade, os alimentos. Não são propriedade destes piratas de hoje“.
Quando esteve em Portugal, em 2019, foi entrevistada pela jornalista Andrea Cunha Freitas do jornal Público. Com base na entrevista, editamos o texto a seguir.
Decidi olhar mais de perto a ascensão dos bilionários
Na conversa com a jornalista Andrea Cunha Freitas, Vandana Shiva explica que seu livro mais recente foi desencadeado por algumas perguntas.
A primeira surgiu quando, na Conferência de Paris [2015], Bill Gates e Mark Zuckerberg estavam no palco e todos os jornais estavam mais interessados no que eles estavam falando do que no restante. Percebi que algo estranho tinha acontecido no mundo, onde estava vendo bilhonários que não eram apenas iguais aos chefes de governo, mas que na verdade os substituíam.
Foi nessa altura que decidi olhar mais de perto a ascensão dos bilhonários.
Desde 1984 que me dedico à indústria química, que veio dos laboratórios de Hitler e dos campos de concentração, e que nos trouxe os gases venenosos, e depois uma agricultura química e a chamada Revolução Verde.
O meu país foi a primeira experiência da Revolução Verde com o Punjab e agora é uma terra arruinada, os solos desapareceram, as águas desapareceram. Escrevi um livro chamado a Violência da Revolução Verde
A dada altura, a antiga indústria química apareceu dizendo que precisavam de deter a propriedade das sementes porque não estavam ganhando dinheiro suficiente vendendo produtos químicos. E a única maneira de possuir as sementes é com as sementes geneticamente modificadas para que pudessem alegar que inventaram algo, pedir uma patente, cobrar royalties aos agricultores. Mas ninguém inventa a vida. Para mim, foi muito claro que havia um processo de colonização na base disto tudo.
Há dois anos, a Monsanto foi comprada pela Bayer e nós tínhamos levado a Monsanto ao tribunal para ser julgada pelos seus crimes.
Por que a Bayer está comprando a Monsanto?
Começamos a olhar para os padrões de propriedade, para os acionistas… e este meu novo livro é sobre como as empresas foram criadas para colonizar o mundo. A maioria das ações não pertence a indivíduos, mas às empresas de gestão de ativos dos maiores bilionários, como a BlackRock e a Vanguard. São empresas que valem trilhões de dólares e que estão financiando a queima da Amazônia.
Eles querem negociar as funções da natureza e isso chama-se financeirização. Portanto, já tinha duas coisas: uma era Bill Gates e Mark Zuckerberg no palco, em Paris, com os chefes de Estado, e outra era a questão da Bayer comprando a Monsanto. Então, percebi: este é um mundo novo, mas é o mundo antigo. Estamos perante os mesmos padrões da colonização.
Os mesmos padrões da colonização
O que é que Bill Gates – visto por alguns como filantropo — está fazendo? Uma Aliança para uma Revolução Verde em África. Os relatórios já mostram que 50% do milho nutritivo desapareceu por causa da Revolução Verde em África. Bill Gates forçou a reescrita das leis de sementes para tornar ilegal guardar as sementes.
Com o objetivo de ter o monopólio de sementes, que ao mesmo tempo é um monopólio de produtos químicos. Terra nullius era a jurisprudência legal na época de Colombo e na época da colonização britânica. Ou seja, a terra está vazia, não pertence a ninguém. Então, primeiro declara-se uma coisa vazia, nullius.
Primeiro justifica-se a exterminação para colonizar. As duas coisas têm de estar juntas. O vazio para o extermínio e para a colonização. Primeiro temos de esvaziar o lugar das pessoas originais para assumir o controle.
O último passo é a colonização de nossas mentes
Agora, a jurisprudência falsa da invenção da vida, que é onde está a Monsanto e Bill Gates, é aquela que chamo de Bio nullius, a vida está vazia até colocarmos um gene tóxico nela. O último passo da colonização é o que chamo Mente nullius: a colonização de nossas mentes.
A mente, na realidade, não está vazia. Qualquer coisa viva tem uma mente viva, mas você pode esvaziá-la. E toda a data mining que está acontecendo é um esvaziamento da mente, tal como se usa uma broca para extrair petróleo.
É um plano do mal, mas é um plano real. Os novos gigantes de dados digitais estão minando nossas mentes, a pegar nelas e a convertê-las na chamada “big data” vendendo-as de volta através do Facebook e WhatsApp e fazendo vigilância.
Tivemos movimentos libertários para lutar contra a tomada de posse das nossas terras, contra tomada de posse dos nossos corpos, o movimento antiabolicionista por causa dos escravos, e nos livramos dessas coisas.
Começamos a lutar contra as empresas de produtos químicos, o que chamo “cartel do veneno”, nos anos 80. Hoje, já conseguimos estabelecer no mundo que a agricultura ecológica é superior à química. O movimento que mais cresce no mundo é a agricultura biológica, apesar de toda a propaganda. Nós ganhamos, na prática.
Redes sociais como ferramentas sob o seu controle
A primeira ação na batalha contra a colonização das mentes é recusar que sua mente seja usada, não participe da Data mining, não participe na venda da mercadoria. Não é sair das redes sociais. Mas usar as redes sociais como ferramentas sob o seu controle. Não permita que eles a controlem.
A vigilância é intensa. E na Índia houve agora um enorme escândalo, onde mais de cem jornalistas, advogados de direitos civis e acadêmicos que trabalhavam para os dalits [os que se encontram no degrau mais baixo do sistema de castas na Índia, os “intocáveis”] tiveram os seus sistemas invadidos por um software de vigilância chamado Pegasus. Ou seja, não estou falando sobre um cenário futuro, nem sobre o possível, mas sobre o que está acontecendo hoje. Definitivamente precisamos de uma regulamentação de governo muito forte.
Uma convenção sobre privacidade digital
Precisamos de uma convenção sobre privacidade digital. Uma convenção global. E isso só acontecerá quando os movimentos crescerem, como o movimento para o direito ao esquecimento. Temos que encontrar novas formas criativas de liberdade, novas ações para a liberdade, novas solidariedades pela liberdade, mas só podemos evoluir se soubermos o que está acontecendo. Pessoalmente, acredito que os bilionários são desonestos, são ladrões.
Afinal, o que é que a Monsanto está fazendo? O que é que Bill Gates está fazendo? A receber impostos ou royalties das sementes que eram dos agricultores em primeiro lugar. Na Índia já perdemos 400 mil agricultores por suicídio por causa dos custos de sementes no algodão. A Monsanto fica furiosa quando eu falo nisto. Estamos falando de um genocídio.
Temos de recuperar as nossas comunicações, o nosso conhecimento
Precisamos recuperar a nossa liberdade e dizer ao senhor Facebook: “estes são os meus dados privados, não são seus para vender à Cambridge Analytica. Temos de recuperar as nossas comunicações, o nosso conhecimento, as nossas sementes, a biodiversidade, os alimentos. Não são propriedade destes piratas de hoje.
A verdade ganha sempre
Temos uma bela frase indiana e que é o nosso slogan nacional e que se traduz em algo como “a verdade ganha”. Acho que a verdade ganha sempre. Não hoje, nem amanhã. Mas a longo prazo, não importa quanta propaganda se faça. A falsidade, as relações públicas, colonização, mitos… caem por terra. Já vimos impérios a ruir.
Nós dependemos da natureza, não somos superiores à natureza
A minha mente esteve sempre a evoluir. Mas não mudei os princípios fundamentais do meu pensamento. Que são: nós dependemos da natureza, não somos superiores à natureza. O antropocentrismo é uma ilusão, a minha tese em teoria quântica ensinou-me que tudo está ligado. Cresci com os valores do cuidado da natureza, da justiça e respeito por todos os seres. Nisso nunca mudei de ideias. Posso mudar tácticas.
Estes jovens nascem numa época em que o planeta inteiro está a arder
Conheci a Greta Thunberg em Paris. E o mais interessante é que estavam a falar em ir para a Amazônia para salvar a Amazônia. E eu disse: não precisam ir para a Amazônia porque as pessoas que estão a destruí-la estão aqui mesmo, na Europa. É a Bayer, a Monsanto que estão a cultivar soja transgênica e tudo o que precisam fazer é parar essas pessoas e a Amazônia será salva.
Eles conseguem ver onde tudo isto os poderá levar. Eles estão a testemunhar o colapso ecológico. Estas são crianças bem formadas, são privilegiados, estão lendo os relatórios dos cientistas, do IPCC, da convenção sobre biodiversidade. Quando eu comecei, estava apenas a proteger uma floresta. Estes jovens nasceram numa época em que o planeta inteiro está a arder, é uma aceleração da destruição e eles estão assistindo a isso.
Eles vêem a decadência da sociedade
O colapso ecológico é só uma parte. Eles estão olhando em volta. Vêem a decadência da sociedade. A Suécia, por exemplo, sempre foi uma sociedade tão pacífica e agora a ala direita está a dominar em todo o lado, criando ódio. Ninguém sabe qual é a escola que vai ser alvo de violência, qual a mesquita que será queimada. Mas há também a questão do seu destino, não apenas ecológico, mas social e econômico.
Voltando aos bilionários, Mark Zuckerberg fez um discurso na Universidade de Harvard no ano passado e disse claramente que a inteligência artificial tornará 99% das pessoas redundantes no futuro. Os jovens estão recebendo essa mensagem e percebendo que a narrativa tecnológica está dizendo que eles não importam.
É sobre encontrar a unidade novamente
O que digo é: vamos salvar o planeta destruindo o mito de que a tecnologia é uma religião que não pode ser questionada. É claro que isto tudo é sobre o planeta porque fazemos parte do planeta, mas também é sobre justiça humana e direitos humanos. E porque nós, como seres humanos, somos os que estamos a ser divididos, trata-se de encararmos a nossa humanidade com a sua diversidade. É sobre encontrar a unidade novamente.
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